Sou recém formada em ciências sociais pela UFPR. Pouco antes da metade do meu curso, tive que escolher entre fazer licenciatura ou bacharelado. Uma vez tendo escolhido o bacharelado, tive que escolher entre as linhas de sociologia, antropologia ou ciência política. Escolhi antropologia, pois se existisse uma graduação inteira só disso aqui em Curitiba, era nisso que gostaria de ser formada.

         Dentre as várias responsabilidades do trabalho do antropólogo, a que sempre mais me chamou a atenção foi a de mediador. Vejo o antropólogo como aquele que é capaz de trazer para o universo acadêmico, burocrático e midiático os problemas vividos por minorias marginalizadas e esquecidas, que ninguém reconhece a existência. Uma vez que o trabalho antropológico se consolida indo ao encontro destas pessoas e modos de vida e comprando várias de suas brigas, vejo como de sua responsabilidade trazer visibilidade para os problemas sociais e propor soluções para eles.

          Mas é claro que o antropólogo não pode fazer nada disso sem reconhecer o seu local de fala. Isto é, fica mais fácil falar sobre as dificuldades de ser um aborígene australiano hoje em dia quando se está em um Congresso bem renomado na Europa. Porém, há diferenças entre pesquisar os aborígenes australianos e militar por eles, auxiliando-os na resolução de seus problemas sociais. Muitos antropólogos acreditam que a militância atrapalha a objetividade etnográfica e torna o trabalho obsoleto, eu, por outro lado, acho completamente sem sentido se aprofundar em questões alheias se você não está disposto a fazer nada por elas. É claro que há uma enorme diferença entre eu, pesquisador, falando sobre os aborígenes australianos e um próprio aborígene falando sobre si. Porém, o meu discurso pode atingir locais que o dele não atingiria. E cabe a mim ampliar a potencialidade da fala dele, mostrando a importância de dar voz a quem não tem.

          Uma pensadora que trata muito bem do assunto é Gayatri Spivak. Como teórica crítica indiana que trabalha na Columbia University (Estados Unidos), ela publicou um livro chamado “Pode o subalterno falar?” (que é bem curtinho e tem tradução para o português), onde discute sobre a possibilidade de fala de subalternos – não apenas na academia. Ela ressalta muito (a falta do) o caráter militante dos pensadores e se coloca em comparação com eles. Como mulher e indiana, sua voz demorou muito mais para ser ouvida do que a de muitos homens europeus que vieram antes dela e apesar de agora ela conseguir ser ouvida, há ainda uma série de assuntos sobre os quais gostaria de tratar e que são silenciados e uma série de pessoas que gostaria de ajudar e não tem a oportunidade. Spivak ressalta muito a necessidade e as virtudes de um mediador, mas também aponta os perigos de uma mediação que silencia a voz do nativo (que é o terror de todo o antropólogo) e nos deixa a eterna dúvida sobre a real possibilidade de o subalterno ser ouvido.

Quando só o mediador fala, será que o subalterno é realmente escutado?

          A meu ver, a proposta da ONU Mulher denominada “He for She” e que tem como embaixadora a atriz Emma Watson corresponde muito com esta discussão. A proposta é que os homens entendam a necessidade do feminismo e percebam o quanto suas próprias vidas são negativamente afetadas pelo fato de viverem em uma sociedade patriarcal e machista. Com esse entendimento e a devida reflexão sobre como se as coisas são ruins para eles, para as mulheres são muito piores, a ideia é que estes homens se tornem agentes de mudança, através da mediação. Vulgo, que eles sejam pró-feminismo de fato.

          Não acredito que homens possam ser feministas justamente por a questão do “mal mediador“, que eu falei que a Spivak discute. Se o movimento que busca pela igualdade de um gênero que está sempre sendo visto como o “segundo” (como bem aponta Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo“) não for encabeçado por ele, não faz sentido. Porém, o fato de as mulheres estarem dirigindo a luta pela igualdade não impede que os homens as acompanhem na carona do carro. E, a meu ver, é essa a proposta do “He for She“. Como a própria Emma Watson ressalta em seu discurso, não é possível lutar pela igualdade se apenas metade do mundo está disposta a construí-la. O risco de um feminismo que exclui os homens é de virar tão autoritário e excludente quanto o próprio machismo e não é isso que a gente quer.

          A ideia apresentada pela ONU é justamente de tornar os homens bons mediadores do processo. Ou seja, se um homem é pró-feminismo e escuta uma piada machista vinda de seus amigos, ao invés de rir vai explicar porque está errado. Ele não vai ser escroto com outras mulheres e não vai, por conta própria, propagar a opressão e o silenciamento – hoje generalizados. Ele vai se esforçar para que em suas atitudes as mulheres sejam respeitadas e para propagar, com bom senso, a mensagem de que independente do gênero, raça, religião ou orientação sexual, as pessoas devem ser tratadas socialmente igual. Ele vai indicar a amiga bem sucedida para ocupar o cargo de sua empresa que acabou de ficar disponível. Vai ler livros de autoras femininas e procurar filmes dirigidos e protagonizados por elas. Ele vai aprender a valorizar as mulheres tanto quanto valoriza os homens, indo muito além de aparências físicas ou outras mesquinharias.

          O feminismo que eu acredito é assim mesmo: repleto de mediadores. Nos locais em que há mulheres que querem falar, elas podem e devem. Nos locais em que elas não estão presentes, mas há homens pró-feminismo, eles precisam falar também. Nos locais onde há mulheres negras falando sobre sua situação, as brancas devem ouvir e aprender. E quando não houverem negras por perto, elas têm que mediar a luta delas. O mesmo quando se tratar de mulheres gordas, lésbicas, transexuais, deficientes físicas ou mentais e ainda as de diferentes religiões. O feminismo não existe para excluir ou seccionar mulheres, pelo contrário, a ideia é agregar todas elas – e não apenas elas. Sabem a música em que o John Lennon pede pra gente imaginar um mundo igualitário e gostoso de se viver? É por esse mundo que o feminismo luta.

          Ninguém tem que roubar o protagonismo ou a voz de ninguém, mas todo mundo tem que ter empatia e sororidade, comprar a briga da colega e falar por ela em toda discussão que levantam algo contra ela. Não temos que ser mulheres fortes apenas no que diz respeito às nossas dores e sofrimentos. Pelo contrário, temos que nos levantar e lutar juntas pelo bem de todas nós. Para que um dia a gente deixe de ser o “segundo sexo” e vire um sexo tão bom, completo e auto-suficiente quanto o masculino. Porque na prática a gente sempre foi tão importante quanto, só nunca tivemos esse reconhecimento. E é por isso que lutamos.

          Um dos frutos muito legais de um feminismo bem refletido, pensado e trabalhado é poder observar entrevistas como a que segue, onde Emma Watson conversa com Malala Yousafzai e as duas se respeitam e constroem. É poder observar as palestras da Chimamanda Ngozi Adichie. É poder ler os textos das incríveis mulheres brasileiras. É poder observar negras ganhando prêmios e sendo protagonistas. É ver crescimento de discussão, reflexão e repertório. E tudo isso depende única e exclusivamente de cada uma de nós.