Estou trabalhando em aprender a me permitir sentir coisas, sem racionalizá-las previamente. É bastante difícil este processo, porque sempre fui uma pessoa que pensa demais e faz de menos. Felizmente, uma terapeuta está me ajudando neste processo, de forma bastante eficaz. E isso me faz pensar em uma série de coisas – mesmo que a intenção seja aprender a pensar menos.

Setembro é um mês voltado para a prevenção do suicídio, algo chamado de “setembro amarelo”. A intenção é fomentar discussões sobre os problemas psicológicos e formas de contorná-los e superá-los. O plano de conscientização é promovido pelo Centro de Valorização à Vida, que possui uma linha telefônica de apoio para estes casos. Basta ligar e desabafar. E a ideia é bastante essa: que conversar pode ajudar muito.

Eu, como uma pessoa falante, concordo que conversar pode ajudar muito. Mas não é suficiente. Ter amigos não é suficiente. Ser amado não é suficiente. Problemas psicológicos e mentais são doenças e precisam ser tratados como tais. Isso significa que não é “falta de Deus”, não é “falta do que fazer” e não é “paranoia de quem pensa demais”. Não são coisas legais ou fáceis para quem passa por. Não é fácil de falar sobre, mas é menos fácil viver sentindo tudo o que nós sentimos diariamente. Porque a sociedade julga quem não se encaixa, julga quem tem qualquer tipo de problema. E julga mais ainda quando são problemas difíceis de ser explicados ou compreendidos.

Eu faço tratamento psiquiátrico e psicoterapêutico. Tomo medicamentos e faço terapia. Tento cuidar da minha saúde mental com todos os instrumentos que possuo. Tenho diagnóstico de ansiedade social, o que significa que 90% das vezes que eu recuso compromissos é simplesmente por não conseguir sair de casa para realizá-los. Mas como é difícil fazer as pessoas entenderem isso, eu acabo inventando desculpas.

É difícil conversar na minha própria casa sobre estas questões. Os medicamentos são entendidos como “algo para ficar acordado, porque ela tem muito sono” e a terapia basicamente ninguém entende porque preciso e porque me ajuda. Escuto bastante que eu deveria voltar a frequentar alguma religião. E que justamente por não sair e não me expor socialmente é que me sinto tão sozinha. Eu escuto que deveria conversar com as pessoas sobre o que eu realmente sinto, ao invés de inventar desculpas. E que não preciso me fingir de forte, em situações em que não me encontro assim.

Mas tudo isso existe apenas em teoria. Na prática, os problemas psicológicos são entendidos como besteiras e qualquer desculpa inventada faz mais sentido para terceiros do que dizer que você está em crise. E pessoas que se dispõem a ouvir você, na verdade estão apenas cumprindo alguma tabela para se sentirem bem consigo mesmas. Pouquíssimas realmente se dispõem a te ajudar. Pouquíssimas sequer se importam de verdade com as respostas para o já normal “tudo bem”. A maior parte das pessoas simplesmente não liga.

E é aí que iniciativas como o “setembro amarelo” podem ser problemáticas. A falsa empatia é uma realidade que machuca muito mais do que a solidão, para quem tem problemas psicológicos. Pessoas não preparadas e que não sabem ouvir ou responder às questões de quem está passando por situações difíceis, que colocam na cabeça que “precisam” ajudar, porque sabem que vão se sentir culpadas caso alguém próximo a elas cometa suicídio, mas que não fazem a menor ideia de como ajudar ou do que são estes problemas ou de como é viver com eles. Essas pessoas não deveriam ser motivadas a ajudar, a se dispor a conversar ou afins. Elas deviam ser motivadas a entender sobre os problemas, não a agir sobre eles. Porque elas podem piorar muito mais as coisas.

Se pessoas que fazem tratamento psiquiátrico e psicológico seguem tendo crises e dificuldades de se manter estável, pessoas que não tiveram o privilégio de um tratamento adequado são ainda mais vulneráveis a recaídas e a cometer suicídios. Se mesmo pessoas medicadas e em tratamento correm risco de vida, as que ainda não foram diagnosticadas, correm ainda mais. Quando a gente se dispõe a falar sobre saúde mental e a ajudar terceiros, estamos lidando com um fator de responsabilidade máxima: a vida de outra pessoa. E a gente não tem preparo para isso. Não somos médicos ou profissionais de saúde. No meu caso, sou alguém com uma vivência dolorosa nestas entranhas. Mas, mesmo assim, não sou indicada para falar sobre os problemas dos outros. Eu posso compartilhar minhas vivências e me dispor a ouvir, mas não posso fazer mais do que isso. Sempre estarei em posição de indicar tratamento especializado. E sempre estarei à espera de estes tratamentos sejam ofertados ao máximo de pessoas possíveis, com qualidade devida.

O Setembro Amarelo me incomoda mais do que me traz esperanças. Me incomoda isso de achar que uma conversa profunda cura uma depressão ou crise de pânico. Me incomoda achar que as doenças psicológica são apenas de causa social. Eu sou cientista social, estudei Durkheim horrores, mas ainda assim acho que nem tudo que acontece com a gente tem causa social. Problemas cognitivos existem. Problemas hormonais existem. Psicossomatismo existe. E tudo isso deve ser tratado com os profissionais adequados. Não com essa falácia de que “é culpa da sociedade, mas se você estiver rodeado de boas pessoas e com laços sociais fortalecidos, tudo ficará bem”. Nem sempre fica. As vezes a nossa cabeça simplesmente não funciona de forma benéfica para nós mesmos. E acreditar que é algo que se cura com conversa pode fazer com que a gente se sinta ainda mais deslocado e maluco, ao perceber que mesmo rodeado de gente bacana os problemas persistem. Então, bom, não seja essa pessoa que diminui a dor dos outros. E, principalmente, não seja essa pessoa que diminui a sua própria dor. Sua dor é válida. E, se ela existe, precisa ser ouvida, diagnosticada, tratada e levada a sério. Porque ela é séria.

Viver nem sempre é a melhor solução. As pessoas que optam pelo suicídio não são covardes. Não fizeram isso para provar algo para você. Tentar descobrir “porque fulano se matou” é uma tremenda burrice. Motivos não importam. O que importa é o ato. Se a pessoa teve a coragem absurda que um ato deste necessita, é porque ela estava sofrendo tanto que não conseguiu ver outra saída. As vezes, mesmo tendo tentado por anos. Mesmo tendo se tratado, mesmo tendo tido apoio e ajuda. As vezes a pessoa simplesmente não consegue lidar com ela mesma. E ela precisa ser respeitada nisso. A dor dos suicidas precisa ser respeitada. Nós, vivos, não temos o direito de falar por eles. De julgá-los. De tentar entender a dor deles. A gente não entende. Nunca vamos entender. Exceto se um dia decidamos fazer o mesmo. E toda a luta pela saúde mental não pode ser pautada em um “medo de se tornar suicida” ou de “ser próximo a um suicida”. Porque cometer suicídio não é causa, é a única solução que parece existir para aqueles que o fazem. O que precisamos é tentar continuar acreditando que existem outras soluções e cada um tem seu tempo para que esta ilusão acabe. A vida de todos nós perde o sentido as vezes e a forma como isso nos afeta é imprevisível. Se é imprevisível para nós, quem somos nós para tentar prever como os outros lidam com isso?

O Setembro Amarelo não deveria ser para estimular que pessoas despreparadas tratem de um assunto tão sério. Ele deveria ser para que as pessoas que já têm liberdade com suas próprias dores se sintam à vontade de falar sobre elas. Alto o suficiente para que a sociedade passe a entender que estamos aqui, seguimos vivendo e precisamos de atenção dos órgãos de saúde do país, mais do que de pessoas curiosas com “como um depressivo se sente”.