Acredito que era fim de Abril ou início de Maio quando fui assistir “Cinderella” no cinema com a minha mãe. O filme não me agradou muito, confesso, mas a aparição da Bonham Carter fez o preço do ingresso valer apena.

Passei a história inteira pensando sobre como a vida seria fácil caso os ensinamentos do filme pudessem ser aplicados na vida real. A mãe de Ella vivia dizendo a ela que se ela fosse gentil e tivesse coragem as coisas ocorreriam da melhor maneira possível, invariavelmente uma maneira positiva para ela. A filha acreditava muito no ensinamento da mãe e mesmo após ela morrer, continuou a propagar a gentileza e a coragem por onde passava. Virtudes muito úteis no momento de lidar com a madastra insuportável e suas duas filhas.

O filme se desenvolve como toda e qualquer história de contos de fada e termina com a seguinte quote: “Ella continued to see the world as it could…if only you believe in courage and kindness…and a little bit of magic.” (“Ella continuou a ver o mundo como podia… se você acreditar na coragem e na gentileza… e em um pouquinho de magia”). Saí da sala de cinema pensando “que bom seria se existisse mágica no mundo em que a gente vive. As coisas poderiam se resolver de forma muito mais branda e as soluções poderiam vir a ser mais justas também”. Deixei esse pensamento adormecido em minha mente, pois é claro que não existia magia. E é claro que ter coragem e ser gentil não adiantam nada em um mundo de pernas para o ar.

Mas no dia 7 de Maio eu pisei pela primeira vez em um Terreiro de Umbanda e percebi que mágica existe. Porque não tem outra explicação possível para o que me aconteceu naquele dia e para o dominó de mudanças gerados a partir de então.

Digamos que só fui ao lugar para conseguir entender um pouco do que estava se passando com meu namorado, que tinha se tornado umbandista e estava falando sobre coisas que eu não conseguia entender e precisava ver e sentir na própria pele pra cogitar aceitar que eram reais. Minha confiança nele e a ânsia por compreender os universos em que ele se enfiasse, somadas com a minha incessável curiosidade por coisas e ambientes novos, me impulsionou a comparecer.

Minha primeira gira foi muito esquisita. Eu não fazia a menor ideia de como funcionava uma gira, de quem eram aquelas pessoas, qual era a intenção do ritual, quem eram as entidades que apareciam, porque se tocavam aquelas músicas… Enfim, eu não entendi absolutamente nada. Mas vi que as pessoas começaram a se levantar na hora que falaram “assistência pode entrar para a defumação” e lá fui eu. A defumação consiste em passarem uma  mistura de incenso e outras ervas queimadas ao redor de você. Depois fiquei sabendo que isso serve para espantar coisas ruins da sua aura e te deixar preparado para o que vem depois.

E o que vem depois é o que chamamos de “passe”. É quando as pessoas ficam paradas e em pé, enquanto os médiuns incorporados passam por elas, fazendo gestos com as mãos e, as vezes, falando coisas. O que eles estão fazendo é, mais uma vez, limpar a aura das pessoas, retirando o que tiver de ruim por perto delas. Em seguida, pede-se que quem queira continuar ali para cura, fique e quem não quiser, se retire. Eu fiquei. Estava de sapatos por puro esquecimento, pois já tinham me ensinado que só se entra li descalço. Mas eu estava com medo e sem saber o que ia acontecer, os sapatos ficaram ali como reflexo do meu inconsciente para um “se precisar correr, você está pronta”. Eu sou desconfiada, fazer o quê.

A aflição por ter pessoas desconhecidas ultrapassando o perímetro de individualidade muito bem construído ao meu redor passou logo no começo. Porque alguma coisa aconteceu e me fez desabar a chorar. Como todas as vezes na vida em que eu tive crises fortes de ansiedade e me tranquei no banheiro. Só que dessa vez na frente de todo mundo, em um lugar novo e que minha mãe jamais aprovaria. Enquanto eu chorava, todos os motivos para que eu chorasse ficavam aparecendo e re-aparecendo na minha cabeça, cada hora em uma sequência ou forma diferente e a agonia era constante.  Alguém tirou os meus sapatos e colocou a mão sobre o meu pé doente. Eu não faço ideia de como ela soube que meu pé era doente, mas depois daquilo ele parou de doer – e assim continuou por quase uma semana. Algo quase que inédito na minha vida. Outra pessoa veio e disse que eu precisava acalmar meu coração e respirar direito, o que me fez chorar ainda mais e querer desaparecer, pois a essa altura do campeonato, eu já estava morrendo de vergonha.

Depois de muito tempo ali (para mim, pareceu uma eternidade), pediram para que quem estivesse ali voltasse para suas cadeiras. Voltei, ainda aflita, chorosa, confusa e muito brava por tudo aquilo ter realmente acontecido e eu não ter como dizer “aff nem tem nada demais” e nunca mais voltar. Não consegui ficar normal ou estável para conversar com qualquer outra pessoa e fui a pior companhia possível até o final daquela noite. Mas, antes de ela acabar, tive a oportunidade de fazer uma consulta a uma das entidades – que no caso era um caboclo de Oxóssi. A consulta caiu em cheio nas aflições vivenciadas antes e me fez refletir mais sobre mim do que os últimos anos de terapia foram capazes. Foi uma experiência muito intensa e maluca.

E eu passei a madrugada inteira chorando. Eu não consegui dormir. Eu abri meu computador, cliquei no OneNote e comecei a escrever tudo que me vinha em mente. Sobre o universo, a transcendência, a possibilidade de me tornar religiosa ou não, a maneira como me portaria com o resto do mundo a partir de então e muito mais. Provavelmente foi uma das noites mais desengonçadas e agoniantes da minha vida. Eu senti vísceras saírem aqui de dentro. Achei que minha boca começaria a sangrar, pois chorava tanto que a garganta estava seca e fechada. E a vergonha de olhar para a cara do meu namorado e da mãe dele no outro dia era imensa. Porque não tinha sido uma boa pessoa, porque não sabia o que falar, porque tudo que eu queria era que nada daquilo tivesse acontecido. Enquanto tudo que eu queria era poder ir mais a fundo e desvendar o máximo possível daquele universo. Senti que finalmente eu teria um motivo real para ser chamada de louca.

E decidi que voltaria na gira de sábado.

Minha mãe não gostou muito da ideia, pois domingo era dia das mães e ela me queria por perto. Além disso, ela não sabia nada sobre umbanda e não concordava que eu estivesse frequentando esse lugar. Mas eu disse a ela que eu precisava ir. Que eu tinha certeza que tudo aquilo que aconteceu na quinta-feira tinha sido apenas o começo, de algo que precisava e merecia ser explorado. Então eu saí alucinadamente procurando por saias brancas pelos brechós da cidade, em vão, e decidi que iria mesmo que não fosse de branco. Peguei apenas uma camiseta. No fim, Tetê acabou me emprestando uma calça. E, já no sábado, comecei a participar da corrente mediúnica. Assim, de pronto. Sem fazer a menor ideia do que era tudo aquilo, sem entender bulhufas do que me tinha acontecido e sem ter noção de qual mundo era aquele em que eu estava me adentrando.

E foi incrível. Incrível a ponto de eu convencer a minha mãe a me ajudar a achar uma saia. A ponto de eu gastar dinheiro com velas e incensos e afins (quem me conhece sabe os níveis da minha pão durice) e de eu discutir com a minha mãe por discordância pela primeira vez na minha vida. Todas as vezes que qualquer conflito ia aparecer, eu abdicava da coisa sem nem pensar. Mãe em primeiro lugar. Dessa vez eu sentia que não deveria abdicar de nada. Que eu precisava continuar. E que ela ia entender ou pelo menos aceitar, porque ela me ama e é minha mãe, no fim das contas. Ela me conhece. E confia em mim. Hoje nós já superamos a crise e está tudo certo, mas foram momentos tortuosos.

Durante este tempo eu vivenciei coisas que achei serem impossíveis durante os 20 anos anteriores da minha existência. E me vi, na véspera do meu aniversário, em um lindo ritual de fundamento, chamado amaci, onde as minhas forças espirituais seriam ligadas com as da casa, para que eu de fato nunca mais ficasse sozinha e que a energia da casa seja alimentada e alimente a minha para sempre.  O ritual foi incrível e foi um dia mais feliz do que qualquer um dos meus aniversários. Acho que senti ali o que eu deveria ter sentido no meu crisma, e o que senti na minha primeira comunhão, quando tinha apenas 9 anos.

Não digo que estou mais sã ou sensata. Continuo confusa, perdida e maluca. Mas tenho tido uma vontade incessável de estudar, de descobrir o mundo. Com a umbanda eu percebi que o que a gente sabe sobre a vida e o universo é muito menos do que aquilo que a gente pode saber. E eu descobri que sou do tipo de gente que não se contenta com esse pouco. Descobri que eu preciso de mais. Descobri que eu consigo acreditar em uma série de coisas que considerava impossível, e a principal delas sou eu mesma. Apesar de diversas vezes ainda passar por recaídas, parei de tomar meu ansiolítico, me joguei na meditação e no esforço para espantar os sentimentos e pensamentos ruins e acreditar mais nas minhas potencialidades.

Minhas notas melhoraram. Não faltei nenhum dia de academia. Tenho me sentido mais apta ao diálogo e a entender e conversar com pessoas diferentes de mim. Os estudos monográficos têm rendido mais, assim como as leituras extracurriculares. E eu tenho sentido uma fé muito maior em mim e na humanidade. Tenho olhado o universo positivamente e tenho conseguido me sentir muito melhor comigo mesma.

E tudo isso para dizer que a mãe da Cinderella estava certa. Ter coragem, ser gentil (e humilde e caridosa) transformam a gente em pessoas mágicas. Transformam o mundo em mágico. Nos leva a perceber que a magia não é algo transcendente, mas sim algo que emana e imana de e em cada um de nós. Ou pelo menos, que tem a possibilidade de emanar. Desde que a gente permita. Para mim foi a umbanda que proporcionou (e continua a proporcionar tudo isso), para você pode ser outra coisa. Mas todos nós temos essa potencialidade de sermos mais. A gente só precisa acreditar um pouquinho mais em nós mesmos.